Edgar Cézar Nolasco
Sei lá se este livro vai acrescentar alguma à minha obra. Minha obra que se dane. Não sei por que as pessoas dão tanta importância à literatura. E quanto ao meu nome? que se dane, tenho mais em que pensar.
Clarice Lispector, A via crucis do corpo
O disco-voador de Macabéa
Um dia Macabéa, protagonista de A hora da estrela, teve um êxtase e viu um disco-voador. Tentou contar a Glória, sua amiga, mas não teve jeito, ou seja, não sabia falar e mesmo contar o que vira. “Não se conta tudo porque o tudo é um oco nada”, conclui seu autor Rodrigo S.M.[1].
Alegórico ou não, possível de ser contado ou não, o fato é que o mundo atinente ao sobrenatural corta de ponta a ponta o pensamento de Clarice Lispector. Com base em suas próprias reflexões – e tendo em vista os tipos variados de leituras que fazia –, Clarice diz chegar “a ligeiramente assustadora certeza de que os pensamentos são tão sobrenaturais como uma história passada depois da morte”[2] para concluir que “a vida é sobrenatural”. Seduzida por esse contexto mediado pelo estranho, divino e terrestre, sagrado e profano, “divino ou demoníaco”, afirma que o sobrenatural “é uma tentação desde o Egito, passando pela Idade Média até os romances baratos de mistério”[3]. De romances baratos ou não, o certo é que ninguém pode negar que a literatura clariciana está minada por um tom de mistério quase inexplicável.
Na introdução da sua versão das Histórias extraordinárias de Edgar Allan Poe, a tradutora e adaptadora Clarice Lispector afirma, a respeito do escritor norte-americano, que “seu estilo é puro, adequado às idéias, dando a elas a expressão exata”[4]: certamente um estilo conveniente para a ficção científica, gênero literário inicialmente reconhecido pela exploração de idéias filosóficas e científicas e pela narrativa objetiva. Segundo Carneiro,
Edgar Allan Poe (1809-1849) será sempre um dos mais destacados precursores, principalmente com os Diálogos entre Eiros e Charmion, Breve Palestra com uma Múmia e A Narrativa de Arthur Gordon Pym. Poe, que também se considera como o “inventor” do romance policial, escreveu histórias sobre viagens em balão, completa novidade em sua época, tendo exercido grande influência em Júlio Verne.[5]
Apesar de não citados por Carneiro, os contos “O caso do Valdemar” e “Deus (Revelação Magnética)”, incluídos entre as Histórias extraordinárias selecionadas por Lispector, também contribuíram para fundar as bases da ficção científica, como afirma Todorov:
Na época da narrativa fantástica, são as histórias em que intervém o magnetismo que pertencem ao científico maravilhoso. O magnetismo explica “cientificamente” acontecimentos sobrenaturais, porém, o próprio magnetismo pertence ao sobrenatural. (...) A science-fiction atual, quando não desliza para a alegoria, obedece ao mesmo mecanismo.[6]
Até mesmo os contos policiais de Poe contribuíram para a formação da ficção científica, pois, como demonstra Eco, as narrativas policiais e de ficção científica assemelham-se: ambas desenvolvem-se como processos lógicos de abdução, para usarmos o termo de Peirce[7]. Assim, a ficção científica possivelmente herdou da literatura policial esse tipo de narrativa.
Antes de falar de outras relações de amizades literárias, quero voltar à relação Poe e Clarice, mais especificamente às Histórias extraordinárias de ambos, porque a tradução/adaptação (na falta de melhor nome em se tratando de Clarice) dos contos daquele selecionados e reescritos pela escritora brasileira só reforçam o tom misterioso, policialesco, fantástico e de science-fiction presente em alguns de seus textos. Na verdade, as Histórias extraordinárias transcriadas por Clarice são de sua autoria e de alguma forma (a exemplo do conto “A queda da casa de Usher”) complementam e desenvolvem suas próprias histórias extraordinárias, como o conto “Mensagem” (1964) que pode ser lido como uma primeira recriação do conto policial, fantástico de Edgar Allan Poe.
Leyla Perrone-Moisés faz uma leitura interessante sobre o conto de Clarice, no ensaio intitulado oportunamente de “A fantástica verdade de Clarice”. O valor de tal leitura crítica sobressai-se quando Perrone-Moisés constata que as transformações operadas pela adaptação do conto de Poe por Clarice “aproximam-no ainda mais de seu próprio conto”[8]. Apesar de Perrone-Moisés perceber que Clarice “altera as conclusões da reflexão” do conto de Poe (aliás prática essa tão ao estilo clariciano, em se tratando não só de tradução e adaptação mas de todo tipo de leitura por quem a autora tem alguma afinidade para sua obra), dela discordamos quando afirma reiteradamente que Clarice, em sua reescritura, “afasta decididamente qualquer apelo ao sobrenatural”. Segundo Perrone-Moisés, o leitor compreendeu que a casa não era sobrenatural e passa a lê-la como uma alegoria. Retomo aqui a passagem de Todorov antes mencionada, para dizer que Clarice desliza para a alegoria, mas mantém em pano de fundo o mecanismo pertencente ao sobrenatural. E diria, discordando mais uma vez de Perrone-Moisés, que a casa do conto clariciano é tão extraordinária quanto comum. Ou melhor: é tão comum que chega a ser lida como extraordinária. Ou seja, a verdade, o real sobre o qual se abre a casa, está escancarado para o leitor, sinalizando que a mensagem poderia estar na origem da science-fiction. Enfim, é por deixar-se ser lida como uma “falsa história fantástica” é que o conto de Clarice deixa-se ler também como uma realística pertencente à ficção científica.
Sem querer forçar nada, ainda mais porque em se tratando de Clarice Lispector mil e uma leituras diferentes podem ser feitas à sua obra, a verdade é que toda uma linhagem de amigos de idéias filosóficas, fantásticas e científicas ancora o imaginário ficcional da autora. Conforme se lê em passagem de Carneiro antes transcrita, Poe não só “escreveu histórias sobre viagens em balão”, como exerceu grande influência em Júlio Verne. Este, por sua vez, de alguma forma também vai influenciar Clarice Lispector, principalmente quando se constata que Clarice traduziu A ilha misteriosa — livro este, aliás, considerado um dos precursores da ficção científica. Ainda em torno dessa mesma temática, Clarice também traduziu Viagens de Gulliver, de Jonatham Swift, entre outras traduções que não vem ao caso mencioná-las aqui.
Pensamos não ser por acaso que Clarice use a palavra “influenciar” em sua transcriação de uma passagem do conto de Poe, quando a mesma está muito longe do original e muito próxima, talvez, do que a escritora sentia no momento com relação à obra de um precursor forte: “cheguei à conclusão de que, embora haja uma combinação de simples objetos, com o poder de nos afetar assim, a análise desse poder basta para modificar ou talvez destruir sua capacidade de influenciar”[9].
É sabido que Clarice Lispector negou por toda a vida qualquer influência literária que a influenciou de fato. Talvez por medo, ou despreparo crítico de achar que, expostas as influências, sua obra seria prejudicada, considerada menor. Clarice leu, por exemplo, O exorcista. No conto de nome homônimo Onde estivestes de noite, que tem uma personagem andrógina que atende pelo nome de Xantipa, Clarice tece comentários que bem poderiam ser tomados como se fossem dela mesma enquanto escritora. Uma jornalista, personagem do conto, depois de afirmar que vai “ganhar fama internacional como a autora de O exorcista que não li para não me influenciar”[10] (LISPECTOR, 1994: 62), telefona para uma amiga e diz o seguinte:
Vou escrever um livro sobre Magia Negra! Não, não li o tal do Exorcista, porque me disseram que é má literatura e não quero que pensem que estou indo na onda dele. (...) o ser humano sempre tentou se comunicar com o sobrenatural desde o antigo Egito com o segredo das Pirâmides, passando pela Grécia com seus deuses, passando por Shakespeare no Hamlet. Pois eu também vou entrar nessa. E, por Deus, vou ganhar essa parada![11]
Diríamos que Clarice leu O exorcista, leu Hamlet, ou seja, leu boa e má literatura (afinal o gosto é sempre discutível, não é mesmo?), entrou nessa sem medo e ganhou literalmente a parada: sua literatura é uma prova disso. Ainda nesse conto de mistério intitulado oportunamente de “Onde estivestes de noite”, uma de suas quatro epígrafes é do cantor e compositor Raul Seixas, retirada de sua letra “Ouro de tolo”[12]: “Sentado na poltrona, com a boca cheia de dentes, esperando a morte”. No que pese a comparação, parece-me que Clarice é traída pela palavra, quando altera substancialmente a letra:
Eu é que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada
Cheia de dentes, esperando a morte chegar.
Cercada por uma época cultural atravessada por experimentações, provocações, inovações, agressões (censura e repressão), histórias místicas, fantásticas, policiais e de science-fiction, Clarice, sentada no sofá de seu apartamento no Leme, talvez tenha lido/ouvido/visto o final da música “Ouro de tolo” — “No cume calmo do meu olho que vê/Assenta a sombra sonora de um disco voador” —, para não muito depois transferir para sua criatura Macabéa sua visão sobrenatural em forma de certeza/verdade: Macabéa “vira o disco-voador”.
O alienígena em “Miss Algrave”
No artigo “A ficção científica no Brasil: um planeta quase desabitado”, Fausto Cunha afirma que, para uma antologia da ficção científica brasileira, “Murilo Rubião, Breno Accioly, José J. Veiga, Luiz Canabrava, talvez Clarice Lispector, além de vários jovens contistas, poderiam ceder páginas”[13]. Talvez Clarice Lispector? Os leitores sinceros do conto “Miss Algrave”, publicado em A via crucis do corpo (1974), discordam da opinião de Cunha.
Na verdade, o nome de Clarice Lispector consta no livro Ficção científica brasileira: mitos culturais e nacionalidade no país do futuro[14], de M. Elizabeth Ginway, mas somente para ilustrar a entrada das mulheres na cena literária brasileira, ocorrida nas décadas de 1960 e ‘70. Ao citar obras de ficção científica escritas por autoras brasileiras naquele período, a teórica norte-americana desconsidera o trabalho de Lispector. Certamente, “Miss Algrave” melhor denote as questões de gênero sexual na ficção científica do que os romances indicados por Ginway: Um dia vamos rir disso tudo (1976), de Maria Alice Barroso, e Asilo nas Torres (1979), de Ruth Breno.
No conto “Miss Algrave”, Lispector utiliza-se do elemento da ficção científica mais popular: o alienígena. De acordo com Benford, “o alienígena é ainda primariamente usado como um molde no qual podemos projetar nossas esperanças e medos”[15] (apud GINWAY, 2005: 53); no caso de Lispector, o alienígena é projetado como portador da esperança, mais especificamente, do despertar de uma sensibilidade feminina.
Para Roberts, “há várias maneiras de ‘o alienígena’ ser usado para codificar a experiência feminina. Marleen Barr tem falado sobre o modo que ‘o feminino’ na sociedade patriarcal é prontamente constituído como alienígena [...]”[16]; no caso de Lispector, o alienígena Ixtlan desperta o lado feminino da protagonista, cujo sobrenome intitula o conto. Porém, antes de descrever o encontro entre Ruth Algrave e Ixtlan, Lispector caracteriza a protagonista como “solteira, é claro, virgem, é claro”[17] e, principalmente, condicionando-a aos valores da sociedade patriarcal: Algrave era uma profissional assalariada exemplar e cristã. Na verdade, o embotamento causado pela sociedade patriarcal reflete-se no comportamento da protagonista como vergonha, ingenuidade e revolta a respeito de acontecimentos e questões sexuais, algo notável nas seguintes passagens: “Tomava banho só uma vez por semana, no sábado. Para não ver o seu corpo nu, não tirava nem as calcinhas nem o sutiã”[18]; “Na televisão de Mrs. Cabot vira um homem beijando uma mulher na boca. E isso sem falar no perigo da transmissão de micróbios. Ah, se pudesse escreveria todos os dias uma carta de protesto para o Time”[19].
Após o contato com Ixtlan, onde Clarice sugere a ocorrência de relações sexuais, Algrave transforma-se: “Não queria mais escrever nenhuma carta de protesto: não protestava mais. E não foi à igreja. Era mulher realizada”[20]; “Ia era ficar mesmo nas ruas e levar homens para o quarto”[21]. Ou seja, a autora utiliza-se da figura do alienígena para, além de encadear a transformação da protagonista, demarcar dois tipos de mulher: a subjugada pelos valores da sociedade patriarcal e a livre.
Mas na descrição do encontro entre Algrave e Ixtlan também identificamos facetas do movimento da contracultura, principalmente o fascínio com as novas tecnologias eletrônicas e com o Oriente, pois por qual outro motivo Lispector caracterizaria a sensação causada pelo alienígena como “um frisson eletrônico”[22] e afirmaria que “eles [Algrave e Ixtlan] se entendiam em sânscrito”[23]? Ou seja, apesar de discutir fundamentalmente questões de gênero sexual, o conto de Lispector revela nas entrelinhas traços do período da contracultura.
Referências Bibliográficas
CARNEIRO, André . Introdução ao estudo da “science fiction”. 2004. Texto mimeografado.
CUNHA, Fausto. A ficção científica no Brasil: um planeta quase desabitado. In: ALLEN, David L. . No mundo da ficção científica. São Paulo: Summus Editorial, 1974.
DEVIDES, Dílson César. 30 anos de rock: Raul Seixas e a cultura brasileira (de 1970 à contemporaneidade). Dissertação de Mestrado em Estudos Literários. UFMS/CPTL. Três Lagoas, 2006.
ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
GINWAY, M. Elizabeth. Ficção científica brasileira: mitos culturais e nacionalidade no país do futuro. São Paulo: Devir, 2005.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
__________________. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
__________________. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
__________________. Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. A fantástica verdade de Clarice. In: Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das letras, 1990.
POE, Edgar Allan: Histórias extraordinárias. Trad. e adapt. de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
ROBERTS, Adam. Science fiction. London: Routledge, 2000.
SEIXAS, Raul. Ouro de tolo. In: Krig-ha, bandolo! Manaus: Universal Music, 2002. CD 11, 3’29.
TODOROV, Tzvetan . Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.
[1] LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 73.
[2] LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 310.
[3] LISPECTOR, Clarice. Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 70.
[4] POE, Edgar Allan: Histórias extraordinárias. Trad. e adapt. de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 7.
[5] CARNEIRO, André . Introdução ao estudo da “science fiction”. 2004. Texto mimeografado, p. 12.
[6] TODOROV, Tzvetan . Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 63.
[7] Ver ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
[8] PERRONE-MOISÉS, Leyla. A fantástica verdade de Clarice. In: Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das letras, 1990, p. 165.
[9] POE, op. cit., p. 70. Em outra tradução brasileira, feita por Brenno Silveira e outros, a passagem traduzida/adaptada por Clarice aparece assim: “Que era aquilo — detive-me a pensar —, que era aquilo que tanto me enervava, ao contemplar a Casa de Usher? [...] existem [...] combinações de objetos naturais muito simples que têm o poder de afetar-nos desse modo, embora a análise desse poder se baseie em considerações que ficam além de nossa apreensão”. Apud Perrone-Moisés, op. cit., p. 164.
[10] LISPECTOR, Clarice. Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 62.
[11] Idem, p. 68.
[12] SEIXAS, Raul. Ouro de tolo. In: Krig-ha, bandolo! Manaus: Universal Music, 2002. CD 11, 3’29. Ver também DEVIDES, Dílson César. 30 anos de rock: Raul Seixas e a cultura brasileira (de 1970 à contemporaneidade). Dissertação de Mestrado em Estudos Literários. UFMS/CPTL. Três Lagoas, 2006.
[13] CUNHA, Fausto. A ficção científica no Brasil: um planeta quase desabitado. In: ALLEN, David L. . No mundo da ficção científica. São Paulo: Summus Editorial, 1974, p. 10. Grifo nosso.
[14] GINWAY, M. Elizabeth. Ficção científica brasileira: mitos culturais e nacionalidade no país do futuro. São Paulo: Devir, 2005.
[15] Apud GINWAY, op. cit., p. 53.
[16] Tradução livre do original: “these are some of the ways ‘the alien’ can be used to encode the female experience. Marleen Barr has talked about the way ‘the female’ in patriarchal society is already constituted as alien […]”. ROBERTS, Adam. Science fiction. London: Routledge, 2000, p. 101.
[17] LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 13.
[18] Idem, p. 14.
[19] Idem, p. 16.
[20] Idem, p. 19.
[21] Idem, p. 21.
[22] Idem, p. 17.
[23] Idem, p. 18.
Nenhum comentário:
Postar um comentário