quarta-feira, 29 de outubro de 2008

PRÓLOGO DE MIM MESMO

Enquanto a aranha cerzia o frágil arabesco da sua teia, vi que a imensidão da noite circundante permanecia atravessando todas as linhas brancas do traçado e que ela passeava dentro da doçura de um abismo. Lembrei-me então de uma outra maravilha cujo nome é homem e descobri o segredo de uma afinidade! Se a aranha faz a teia, o homem tece biografia. Biografia é a tristeza de não ter podido residir no elemento negativo: se o homem foi constrangido a abandonar a “simplicidade da noite” pela loucura do nascimento, ele pode, numa rememoração permanente do oculto, suportar a luz cansada que vigora na passagem pelo exílio deste mundo.1
PESSANHA. Ignorância do sempre, p.101.
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1 Escrever para mim é tecer minha biografia. Mas adianto que se engana quem pensa que sou confessional. E também não sou individualista, mesmo sem deixar de ser narcisista (isso por conta da escrita) e, às vezes, esnobe (herança que eu nego), porque não deixo de tecer também a vida daqueles que amo e admiro.
A escrita é a noite e me acompanha a cada respiração. Às vezes ela é a tarde, e eu morro. Não estou escrevendo em grego; estou sendo pós-metafísico: a escrita é fora, é pública; eu sou de-dentro. É isso? Não sei. O que sei é que sou um homem angustiado de escrita. Nela meu traço treme. Meu traço humano.
Daí eu concluir que rasurar, contornar a teia-escrita é pensar a possibilidade de encontrar-me em meio ao meu próprio traçado humano. Um dia eu sai, cansado, para contornar minha angústia numa tarde e fiquei lá, perdido.
A escrita trabalha a possibilidade de me tornar escritor sem que eu o seja a princípio. Essa escrita em infinitisimal ponto de nhânduti me desenha para o outro de mim mesmo. Minha escrita não pode ser confessional porque ao escrever faço a anamnese do vivido na tentativa de tentar compreender porque me meti nesse lugar perigoso de escritor.
Quem tentou dissecar a angústia morreu, principalmente as Ciências. Às vezes me reservo o direito ambicioso de querer contorná-la com meu olhar doente e viciado, ocidental e metafísico.
Um livro, uma pessoa, uma amizade, um encontro aleatório acidental qualquer desencadeou em mim, de forma um tanto quanto inconseqüente, a necessidade vital de escrever. De modo que só me resta agora agarrar a tal gesto; também meio inconseqüente e sem nenhuma segurança. A escrita é minha travessia única, apesar de dar-me um desenho esgarçado de minha biografia. Devem haver, e sei que há, outras possibilidades, mas viver é escolher, selecionar e julgar. “Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”, disse Borges.
O fracasso maior de minha escrita a mim é que ela, ao invés de me acenar com a possibilidade de uma resposta, devolve-me uma pergunta maior do que meu entendimento __ minha razão. Daí eu poder dizer que minha escrita é o meu lugar e o lugar do desassossego por herância. Cansado, cansado, cansado, eu pergunto de-dentro de minha fragilidade, e ouço o enigma: escreva, escreva, escreva.! Com certeza não por acaso Clarice Lispector tenha dito que “escrever é um dos modos de fracassar”.
Ah e eu que pensei que se podia confiar nos sentimentos para escrever. Aprendemos com Nietzsche que por trás dos sentimentos há juízos e estimativas de valor. Pessanha não poderia estar mais certo do que quando afirma que “toda a obra de Nietzsche pode ser lida como um grande soco na altivez humana”. Nietzsche, escuta-me por favor: eu confio nos meus desejos. Ou melhor, eu procuro respeitá-los nem que seja para resignar-me quando for a hora. Ai que tristeza: às vezes não quero resignar-me a nada. Nem mesmo à vida, pode? Não, não pode, meu alter-ego responde apressado.
Não estou fazendo um prólogo nem muito menos um posfácio, mas devo dizer que se eu não tivesse a priori um projeto de escrita, eu teria sido tragado pelo mundo dos outros e este livro não passaria de uma mera compilação ordinária. Espectros de escritores mortos, legião deles, tentaram em vão me dissuadir, querendo convencerem-me de que minha escrita era fútil e desnecessária. Resisti bravamente. E fui oportunista, a ponto de tirar proveito de suas presenças espectrais. Talvez Borges tenha razão: eu sou todos os demais leitores, qualquer escritor é todos os escritores, de modo que eu sou todos eles e eles me são. Saber disso facilitou-me a vida. Afinal, apesar de saber que “não há exercício intelectual que não resulte ao fim inútil”, acredito que todo homem é capaz de todas as idéias nos dias atuais.
Confesso que a matéria deste livro nada presunçoso, pelos deuses, está envolta à minha biografia: uma dor, que vem de fora, um desespero seu causa, uma angústia familiar, idiossincrasias, amizades valiosas e outras discutíveis, um desejo de morte sem tamanho__ tudo isso, e mais o que nem eu mesmo sei, tinge o desenho de minha bioescritura.
Duras, Emily Dickinson, Hilda Hilst, Virginia Woolf, Mahamoud Darwish, Michael Cunningham, Borges, Pessanha, Clarice Lispector, formam a plêiade de amigos literários que eu quis eleger neste diálogo. Todavia não posso deixar de avisar ao leitor de que não é aconselhável que ele confie demais, pois as epígrafes-citações apostas como entradas podem não só estar em ordem, como fazerem mais alusão em outros textos que não aquele que as segue. Confesso que nem sempre parti do fragmento alheio; muitas vezes eu tinha uma imagem, uma lembrança ou um tema e daí, sim, depois buscava uma passagem mais correspondente. Nolasco: a você que é um de-dentro da escrita, entrego-lhe minha biografia de-fora. Saiba que seu menosprezo tem me sido muito produtivo. O meu desespero e a minha dor passam por outro lugar ainda não situável. Espero que minha história escritural me revele o caminho.

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