quarta-feira, 29 de outubro de 2008

LITERATURA, MERCADO E CONSUMO

Edgar Cézar Nolasco (UFMS)






Se o seu crediário do ano passado ainda não acabou de ser pago, porque se emendou com o do ano atrasado, isso prova que uma saudável corrente de crédito, estendível até o infinito, está cercando sua vida de mercadorias e de confiança

DRUMMOND (Citações de CARAS, ed.700,ano14,n14,6/4/07)


Penso que um bom começo para se falar da inter-relação a que me propus, ou seja, sobre a relação entre “literatura, mercado e consumo”, mesmo que de forma não tão rígida, seja lembrando o texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, de Walter Benjamin, por entender que nesse texto de 1935/1936 a obra de arte de um modo geral, e a literatura em particular, podem ser pensadas como uma mercadoria que chega à praça pública, podendo ser comprada (por muitos), levada para casa e consumida ao bel-prazer do freguês.
Ao retomar a análise do modo de produção capitalista levada a cabo por Marx, Benjamin observa que Marx concluiu que se podia esperar desse sistema capitalista não só uma exploração crescente do proletariado, como também a criação de condições para a própria supressão de tal sistema (BENJAMIN,1994,p.165). É nesse contexto de produção capitalista que Benjamin lembra-nos que “a obra de arte sempre foi reprodutível”, ou seja,o que os homens faziam sempre podia ser imitado por outros homens: tal imitação era praticada por discípulos em seus exercícios, pelos mestres para a difusão das obras e também por terceiros, estes meramente interessados no lucro (C.f p.166). Apesar disso, Benjamin reconhece que a reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo (lembramos que o texto de Benjamin é de 35/36) e que acontece com intensidade crescente. Começa pela xilogravura, técnica primeira de reprodução, passa pela imprensa que transforma a reprodução técnica e chega à litografia, onde a técnica de reprodução atinge uma etapa essencialmente nova (p.166).
Ao tratar da relação entre reprodução técnica e autenticidade, por exemplo, Benjamin não hesita em pensar que a cópia rivaliza com o modelo: “a reprodução técnica pode colocar a copia do original em situações impossíveis para o próprio original” (p.168). E mais, a reprodução aproxima do indivíduo a obra. Tratando até aí especificamente da fotografia, Benjamin lembra que “a catedral abandona seu lugar para instalar-se no estúdio de um amador” (p.168). Tal fenômeno (de reprodução) apesar de não ser exclusivo da obra de arte afeta a mesma num ponto só dela: sua autenticidade que, para Benjamin,”é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição” (p.168). E daí Benjamin chega ao conceito de aura que sintetiza e esclarece a questão da reprodução: “o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura”. Mas avancemos no texto de Benjamin para ver o que pode significar essa inconceituável e fantasmática aura: “é uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais:a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” (p.170).Com o declínio da aura, generalizando Benjamin quer dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido, substituindo, assim, a existência única da obra por uma existência serial. Tal técnica,que permite a multiplicidade dos produtos,abre um espaço para que tais produtos reproduzidos venham ao encontro do espectador, (do consumidor) e, ao fazer isso, acaba atualizando os objetos reproduzidos na sociedade. Não resta dúvida, e isso fica mais visível quando se percebe que ele se relaciona de forma direta com os movimentos de massa, porque não dizer agora com a massa, com o povo, com a minoria que caracteriza a maioria excludente de toda e qualquer tradição (?). Tal abalo na tradição pela, digamos,cultura de massa, não deixa de contribuir com “a liquidação do valor tradicional do patrimônio da cultura” (p.169)., conforme sugere Benjamin. Lembramos, aqui, que é exatamente contra tal suposta liquidação sumária de uma estética canônica, como se a mesma fosse eterna e, logo, inalterável, que irrompem todos os defensores de uma alta cultura, de uma alta literatura, a exemplo de Leyla Perrone-Moisés, em Altas literaturas. Parodiando o sugestivo título do referido livro, podemos dizer que o livro das baixas literaturas está sendo escrito no presente sem ignorar toda uma estética do cotidiano massivo, mercadológico, consumista e efêmero, e que encampa toda uma produção deixada à margem de uma classificação estética elitista __ produção essa ora denominada de paraliteratura, ora de contraliteratura, ora de parapolicial e até mesmo de science fiction.
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Não temos como não lembrar aqui das palavras de Eneida Maria de Souza ao criticar a posição da crítica elitista e binarista: “se esse discurso crítico abandonasse o sentimento de perda e reelaborasse o luto de maneira cultural a aceitar a presença, embora faltosa, da literatura no sistema cultural da atualidade, poder-se-ia atenuar o valor de propriedade exigido para os diferentes tipos de discurso. Uma vez que o objeto literário encontra-se, há muito tempo, desprovido da aura e transformado em mercadoria, recalcando-se o traço do trabalho que o produziu, torna-se igualmente difícil identificar o repertório de leituras do escritor” (SOUZA,2002,p.86).
Propositalmente quero aqui exemplificar como tal repertório de leituras de um escritor migra e transmigra para todos os cantos e páginas desarquivando, por conseguinte, qualquer leitura canônica que tente imperar, ancorar e manter uma tradição cultural de leitura fechada. Nesse sentido, Jorge Luis Borges pode ser considerado um escritor clássico moderno: dialoga com toda uma tradição preexistente a ele, ao mesmo tempo em que dialoga, também, com gêneros marginalizados de tal tradição, como a ficção científica. É sabido que um dos primeiros textos de Borges foi publicado numa revista do gênero, como também participou enquanto intelectual como júri de vários concursos de ficção científica. Como se não bastasse, os grandes precursores borgisianos, considerados "pais” da literatura fantástica, como Edgar Allan Poe, são também considerados precursores do gênero ficção científica. Borges não foge à regra, se se pensar em termos de América Latina. Agora sem descartar Borges, mas muito pelo contrário, mantendo-o no centro da discussão,trazemos de forma breve Paulo Coelho, já que depois voltaremos ao escritor brasileiro.
No livro de entrevista Confissões de um peregrino, Paulo Coelho informa ao seu leitor que nasceu no mesmo dia, no mesmo mês e sob o mesmo signo, embora muitos anos depois, de seu ídolo literário, Jorge Luis Borges. E confessa, que para poder conhecê-lo pessoalmente, “pegou um ônibus no Rio de Janeiro e viajou durante 48 horas até Bueno Aires. Conseguiu encontrá-lo depois de não poucas peripécias e, quando esteve finalmente frente a ele, ficou mudo. Olhou para ele e pensou: “’os ídolos não falam’, e voltou para o Rio” (ARIAS,2001,p.13). Antes de mais nada, lembramos que coincidências epocais, curiosidades e esforços pessoais como os mencionados não nos interessam aqui. Muito menos qualquer possível relação intertextual, prática moderna altamente desgastada, nem muito menos, por mais que tenhamos uma tendência crítica, estabelecer, mesmo que fosse metaforicamente,o que não é o caso, nenhuma relação biográfico-cultural. Nada disso. Antes queremos tão-somente mostrar que a leitura feita por Paulo Coelho, ou melhor, sua produção, ou parte dela, pode nos dias atuais sugerir o estudo de um lado da formação e, por conseguinte, da recepção da obra de Borges que ficou relegada de sua “fortuna crítica” talvez por puro preconceito crítico. Ou seja, há um lado formativo em Borges totalmente atravessado por questões marginais,como a ficção científica e outros ramos da própria cultura de massa que foram simplesmente ignorados pela crítica canônica, pelo menos no Brasil e na América Latina.
A título de ilustração do que estamos dizendo, destacaremos alguns casos da obra de Coelho que sinalizam tal leitura, apesar de o escritor brasileiro, cada vez mais, talvez trabalhar no sentido de se aproximar mais de Borges, bem como de qualquer outro escritor, pelo crivo da alta literatura. Nesse caso, vemos aí tão-somente uma alienação cultural por parte de Paulo Coelho. Em seu penúltimo livro, O Zahir, Coelho retoma seu diálogo com o escritor argentino e, de forma direta, diríamos, desde o título dessa vez. Zahir é o nome de um conto de Borges. Só que enquanto em Buenos Aires, de Borges, o zahir é uma moeda comum de vinte centavos ,entre outras coisas, em Coelho o zahir é uma mulher e seu nome é Esther. Coelho retoma e dialoga diretamente com o conto borgisiano, como se pode ver nesta passagem: “um ano depois, eu acordo pensando na história de Jorge Luis Borges: algo que, uma vez tocado ou visto, jamais é esquecido __ e vai ocupando nosso pensamento até nos levar à loucura. Meu zahir não são as românticas metáforas com cegos, bússolas, tigre, ou a tal moeda” (COELHO, p.60). No mesmo livro, Paulo Coelho abre o capítulo afirmando, na esteira de Borges, que a idéia do zahir vem da tradição islâmica, e estima-se que surgiu em torno do século XVIII, e que zahir, em árabe, quer dizer visível, presente, incapaz de passar despercebido.
A imagem do zahir aproxima-se, metaforicamente, da imagem do Aleph: algo ou alguém, um ponto no qual uma vez posto em contacto com ele, ocupa pouco a pouco o pensamento alheio, até perder-se toda concentração, o que assemelha-se à santidade ou loucura. É por esse viés de cultura islâmica, outra cultura, culturas, digamos, marginais ou pelo menos não ocidentais, logo, não canônicas, que distendemos um fio que mostra a aproximação entre Borges e Coelho, já há muito esboçado na prática cultural do escritor brasileiro.
Outro exemplo: no livro Arquivos do inferno, que teve prefácio de Artur da távola para a edição brasileira e de Andy Warhol para edição holandesa, a primeira parte tem por título ‘Em busca de J.L.B.”. O livro dialoga na forma e no conteúdo com o escritor argentino. Mas não é o que mais no chama a atenção, como já sugerimos. Sugestivo é perceber que o título da parte não deixa de lembrar o romance proustiano que , entre outros, abre o século XX. A importância para nós reside não na lembrança do grande romance proustiano mas, sim, no desarquivamento contextual que o livro de Coelho propõe. Nesse sentido, é o lado “b” de Borges quem nos ajuda a pensar tal reflexão, tal aproximação, inclusive passando por Borges. Deixando para outro momento a importância dos referidos prefácios e inclusive um P.S. no prefácio de Artur da Távola onde se lê “se Nietzsche fosse vivo, seria amigo de Paulo Coelho”, chamo a atenção para um comentário que não poderia ser menos borgisiano:”tudo neste livro é absoluta ficção __ cuidado”.(1983).
Já no livro Manual prático do vampirismo, logo na apresentação, encontramos outra alusão direta a Borges. Coelho diz que ele e Nelson Liano Jr., co-autor do livro, cansados de uma escalada, resolvem passar a noite num hotel misterioso situado a alguns quilômetros do abrigo de alpinistas. Já na mesa do hotel, aproxima-se deles sem cerimônia um hóspede que se apresentou como um finlandês e que disse chamar-se Flamínio de Luna. Tal hóspede disse também ter lido numa revista uma reportagem sobre o interesse de Coelho por vampiros. Relata ainda Paulo Coelho que no dia seguinte procurou por Flamínio para conversarem mais, e soube que ele havia partido. Conclui que o caso não teria passado de uma bela história para ser contada aos amigos, quando recebeu __ duas semanas depois __ o manuscrito de Manual prático de vampirismo. O pacote, entregue pelo correio, não trazia o endereço do remetente, conclui Paulo Coelho. História mais borgisiana impossível. Mas o melhor ainda é perceber que o tal Flamínio de Luna, mesmo que não tenha existido na história da humanidade, encontra algum parentesco com o Marco Flamínio Rufo, do conto O imortal, de Borges. Pela atmosfera de feitiçaria borgisiana que paira no livro de Coelho, desde a apresentação mencionada, fica subtendido que o desconhecido bem que poderia ser o próprio Borges.
Feita essa digressão toda em torno dos dois escritores mas não sem um propósito crítico, retomo minha discussão anterior.
Volto mais uma vez ao texto de Benjamin, não para lembrar que “a arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu centro a obra original” (p.180), nem para lembrar também que “a reprodutibilidade técnica da obra de arte modifica a relação da massa com a arte” (p.187), o que já parece ponto pacífico pelo menos de lá (1936) para cá; mas para reiterar que o mundo do trabalho toma a palavra, ou seja, saber escrever sobre o trabalho passa a fazer parte das habilidades necessárias para sua execução. Com isso, Benjamin está nos dizendo que “a competência literária passou a fundar-se na formação politécnica, e não na educação especializada, convertendo-se, assim, em coisa de todos” (p.184).
Se, à época de Benjamin, cada pessoa podia reivindicar o direito de ser filmada (p.183), de lá para cá, qualquer pessoa, indivíduo,qualquer cidadão pode reivindicar o direito de ser artista em todos os sentidos (os reality-shows estão aí para não nos desmentir), de ser escritor. Nunca a boutade de Andy Warhol foi tão cumprida à exaustão como nos dias atuais. Talvez seja já prevendo todas as mudanças conceituais, inclusive, que Benjamin afirmara que “a massa é a matriz da qual emana, no momento atual, toda uma atitude nova com relação à obra de arte” (p.192), a ponto de completar: ‘a quantidade converteu-se em qualidade “(p.192)”. Se há, o que não discuto, alguma crítica do filósofo alemão nessa sua afirmação, interessa-me tão-somente discuti-la na direção de seu descentramento e de sua exaustão confirmatória, como condição possível para melhor compreender a sociedade de consumo, ou capitalismo tardio estudados por Jameson (que relê Benjamin, que relê Marx).
E não por acaso a boutade benjaminiana, “a qualidade converteu-se em qualidade”, me obriga a transcrever, na tentativa de ilustrar a discussão, uma passagem grande de Marx, onde este afirma que “o capitalismo faz da obra de arte uma mercadoria”:

tal como a moeda [e aqui não tem como não me lembrar da moeda borgisiana chamada zahir], que não denuncia o que nela se transformou, assim, tudo, mercadoria ou não, se transforma em moeda. Não há nada que não se torne venal, que não seja objeto de compra e venda! A circulação torna-se grande cornucópia social onde tudo se precipita para dela sair transformado em moeda legítima. Nada resiste a esta alquimia, nem mesmo os ossos dos santos, ou outras coisas sacrossantas, ainda mais delicadas, res sacro-sanctae extra commercium hominum [Coisas sacrossantas não participam do comércio dos homens]. Assim como todas as diferenças de qualidade entre as mercadorias desaparecem diante do dinheiro, assim, ele próprio, nivelador radical, apaga todas as distinções.3 Mas o dinheiro é também uma mercadoria, uma coisa que pode cair nas mãos de quem quer que seja. A força social transforma-se, desta maneira, em força privada dos particulares. Por isso, a sociedade antiga o denuncia como agente subversivo, como o dissolvente mais ativo da sua organização econômica e dos seus costumes populares (MARX, ENGELS, p. 30-31)

Tudo se transforma, grosso modo, como objeto, utensílio descartável dentro de um shopping center mercadológico. As cidades, as lojas de conveniências, as livrarias, os museus, as casas etc não passam de bazares que armazenam de tudo, e tudo a gosto do freguês, do consumidor, do visitante ou residente do local. Ou seja, “tudo o que era tradição, ritual ou crença transforma-se agora em mercadoria.[...] A cultura empresarial e financeira orienta os centros culturais e os museus que se tornaram uma espécie de shopping center de arte e de todos os bens de consumo agregados” (MADEIRA,apud DEVIDES,p.82). Em meio a esse público consumidor contemporâneo, bem como a todos bens culturais variados, diversificados e efêmeros, encontra-se, por exemplo, a figura do intelectual. Mesmo que sua obra já esteja quase fora do cânone, beirando o esquecimento, por não ser mais lida como outrora fora, uma articulação cultural consumista tem o poder de lembra-la na mente volátil dos leitores, quando põe em circulação mercadológica biografias do intelectual, camisetas com frases chamativas retiradas da obra, bonés com ilustrações ou expressões, chaveiros, adesivos, páginas na internet, tatuagens, bibelôs, livros de fotografias, filmes, livros de receitas, sósias e imitadores etc __ tudo, enfim, ao mesmo tempo que negocia com a recepção, com os leitores/ consumidores, tal indústria cultural também não deixa de negociar a reinserção de uma obra na sociedade de consumo contemporânea.
Parece-me que tudo ganha ou visa uma, não “aura”, mas “alma” de best-seller (de sucesso, de produto muito vendido), já que sua efêmera permanência reside exatamente em sua circulação, movimentação, como se mirasse um flash que precisa deter a atenção de mais espectadores possíveis em menos tempo possível. A permanência das coisas e dos objetos parece residir em seu estado de superfície volátil e efêmero. O crédito que o texto, os objetos, as coisas abrem para eles mesmos já demanda a participação do leitor/consumidor no ato do consumo, da leitura, da interação, posto que é impossível visar perenidade do que quer que seja, assim como a imortalidade do suposto autor. Diferentemente de Nietzsche que disse “vivo do meu próprio crédito (...)”, na tentativa de receber uma identidade que ele reivindica “do contrato imediato que firmou consigo mesmo” segundo Derrida, entendemos que quaisquer produtos na contemporaneidade, ou seria melhor dizer produção?, assim como qualquer autor (autoria), ocupam seu lugar de permanência só antes da morte. Ou seja, a perenidade e a imortalidade das coisas e das pessoas acontecem antes de elas verdadeiramente morrer. Parodiando Clarice Lispector, o negócio é ainda não-morrer. Morrer, mais do que nunca, pode ser o limite.. Daí querermos entender, e dizer, que a permanência de tudo que é estático ou vivo reside na orla de sua superfície —pura estampa do imaginário humano. Talvez seria o caso de se pensar, se nos fosse possível imaginar a imagem, em uma alma sem corpo — o que não seria nunca o vazio, já que o vazio seria o contrário da frase. “Entender é a prova do erro”, disse certa vez Clarice Lispector ao pensar filosoficamente na existência do ovo, que nunca passa de mera casca branca.
Mas deixando esses devaneios conscientes para trás, valho-me agora de Fredric Jameson que nos ajuda a entender a questão em torno da cultura do consumo, principalmente quando diz que “a produção estética hoje está integrada à produção das mercadorias em geral” (JAMESON, 2004,p.30). Aliás, Jameson reitera que o que aconteceu com a cultura pode muito bem ser uma das pistas mais importantes para se detectar o pós-moderno: “uma dilatação imensa de sua esfera (a esfera da mercadoria)” (p.14). Jameson não por acaso retoma Benjamin que achava que tudo isso daria em facismo, para dizer que nós, nossa época, melhor dizendo, sabe que tudo não passa de divertimento: “uma prodigiosa alegria diante da nova ordem, uma corrida às compras,(...). Assim, na cultura pós-moderna, a própria ‘cultura’ se tornou um produto, o mercado tornou-se seu próprio substituto, um produto exatamente igual a qualquer um dos itens que o constituem: o modernismo era, ainda que minimamente e de forma tendencial, uma crítica à mercadoria e um esforço de forçá-la a se autotranscender. O pós-modernismo é o consumo da própria produção de mercadorias como processo” (p..14)
Tendo por base o que defende Jameson, entendo que vários exemplos contemporâneos poderiam muito bem ilustrar sua defesa. Poderíamos valer-nos de produções saídas das artes plásticas, da mídia, da cultura de massa, da alta literatura, das margens subalternas etc, mas penso que um bom exemplo para pensar tal questão hoje pode ser o emergente intelectual pop-cult Paulo Coelho, por entender que ele é, hoje, um dos escritores brasileiros mais transnacionais que se tem notícia. Nesse sentido, o penúltimo livro do autor, O zahir, já mencionado, teve uma tiragem inicial de oito milhões de exemplares em 42 línguas e 83 países. Seu lançamento mundial e oficial foi no Irã, 48 horas antes do Brasil, onde a primeira edição foi de 320 mil livros, recorde nacional. O lançamento oficial acontece no Irã por ser o lugar do mundo onde há mais edições piratas de Paulo Coelho. “A única maneira de minimizar a pirataria é lançar o livro primeiro aqui em Teerã, assim ele passa a ser considerado um romance nacional e recebe proteção das leis locais de direito autoral,” diz Arash Hejazi, editor do escritor brasileiro em persa (Veja,p.115). O livro, que tem como protagonista um escritor que ganha fama depois de percorrer o místico Caminho de Santiago e escrever um livro sobre o assunto, reflete o atual momento de fama internacional que o autor vive. O mundo das celebridades é o assunto principal do livro. Entre outras questões, sobra ao estudioso descobrir o que há de ficção e de realidade nos episódios contados. Afora isso, a questão que a narrativa de Paulo Coelho propõe é correlata a toda narrativa ficcional contemporânea, uma vez que nem a questão da forma é mais a tônica, ou seja, preocupação da construção. Também parece não ser a questão da subjetividade tão presente na narrativa moderna e até depois, o que move tal narrativa. Mas uma coisa parece certa: o poder narrativo do escritor Paulo Coelho é um ‘mistério’ que precisa ser estudado com seriedade crítica, pelo menos no Brasil. Entendo que qualquer explicação para o fato de ele ser, hoje, o escritor mais lido, por exemplo, numa Rússia de Dostoievski e Tolstoi passa necessariamente por aí: uma vez que a recepção vale-se da narrativa para ler além dela, aquilo que melhor lhe interessa. O interesse do público leitor pela narrativa de Paulo Coelho é um fato inconteste. Se for verdadeiro como dizem que ‘quando você tem um projeto, o universo inteiro conspira para que ele se realize”, diríamos que no caso de Paulo Coelho a ascensão da cultura de massa, a mídia, o mundo globalizado e econômico contribuíram sobremaneira para que ele ocupasse o lugar que ocupa de fato e de direito; como outrora outros ocuparam seus devidos lugares e tiveram seu devido reconhecimento, pouco importando que tenham se valido de outros meios e estratégias
No caso da literatura ocidental, o cânone está aí que não nos deixa mentir. E o que é melhor: não temos tempo para nenhuma espécie de nostalgia.
Para finalizar, pelo menos por enquanto, já que me referi a Jameson, Benjamin e Marx, gostaria de lembrar que uma das grandes novidades propostas pelos Estudos Culturais contemporâneos (e não excluo os estudos pós-modernos) é um certo retorno à teoria marxista que os mesmos propõem. Não precisamos nem ser marxistas para entender, conforme Derrida em Espectros de Marx., que há um certo espectro, ou espectros de Marx rondando o pensamento do século XX. Queria apenas lembrar também que quando Hoggart e Williams se propõem alfabetizar adultos na Inglaterra, eles estão totalmente conscientes dos postulados marxistas. O problema é que se começa a verificar, cada vez mais, talvez como Marx já percebera noutro momento, que os Estudos culturais não estão acontecendo onde de fato deveriam acontecer, ou seja, na prática. Daí entender e dizer que “aplicar” os Estudos Culturais é valer-se do que propõe sua teoria para pensar e alterar o que vai mal na realidade social, cultural de uma nação.
Silviano Santiago em seu belo texto “Literatura e cultura de massa” diz que “retomar a questão da literatura em 1995 só tem sentido se se passar antes pelo desvio da cultura de massa, desvio que a crítica brasileira tem evitado trilhar, mas pelo qual todos nós, no dia-a-dia, passamos de uma maneira ou de outra” (SANTIAGO,2004,p.111). Entendo que o mesmo vale para se compreender as produções culturais e a própria cultura do presente: deve-se fazer o desvio necessário que as diferentes produções culturais, assim como suas respectivas culturas demandam, para que não se corra o risco de se ter um olho entortado. Afinal, parodiando Stuart Hall, os “perigos” propostos pelo descentramento do pensamento, da cultura e do mundo contemporâneos, bem como pelo descrédito pelo qual passam os conceitos hegemônicos, totalizantes e excludentes não são lugares dos quais se deve fugir, mas lugares na direção dos quais devemos ir.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARIAS, Juan. Confissões de um peregrino: entrevista com Paulo Coelho.Trad.de Alicia Ivanissevich. Rio de Janeiro: Objetiva,2001.
BENJAMIN. Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
COELHO, Paulo. O zahir.Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
COELHO, Paulo. Arquivos do inferno. Rio de Janeiro: Shogun Editora e Arte Ltda, 1982.
COELHO, Paulo e LIANO JR , Nelson. Manual prático do vampirismo. Rio de Janeiro: Editora Eco (s.d.)
JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. De Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 2004.
MARX - ENGELS. Sobre literatura e arte.Trad. de Olinto Beckerman são Paulo: Editora Globo, 1986
NOLASCO, Edgar Cézar. Quando a moeda literária vale 1,99 no mercado clandestino de Clarice Lispector,p.99-107. In.: REVISTA brasileira de Literatura Comparada, n 6. Belo Horizonte, 2002.
_________, Caldo de Cultura: a hora da estrela e a vez de Clarice Lispector. Campo Grande: Ed. UFMS, 2007.
REVISTA Veja, Edição 1897, ano 38, n. 12, 23 de março de 2005.p.108-115: Celebridades: o escritor Paulo coelho:o brasileiro mais lido no mundo.
SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte; Editora da UFMG, 2004.
SOUZA, Eneida Maria de Crítica cult. Belo Horizonte; Editora da UFMG, 2002.




1 Este ensaio faz parte de um livro que o autor está escrevendo no momento sobre a literatura do escritor Paulo Coelho, onde discute a relação entre literatura e indústria cultural no dias atuais. Uma primeira versão do texto foi apresentada no Museu da Imagem e do Som de MS (MIS), no dia 19 de abril de 2007, como parte do Projeto Cultura em Situação, coordenado pelo Programa de Mestrado em Letras – Estudos de Linguagens, DLE/CCHS/UFMS e pelo próprio Museu.


2 É ilustrativo lembrar aqui da primeira nota de Fredric Jameson, em Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, quando o crítico lamenta a falta de um suposto capítulo no livro: “aqui é o lugar par lamentar a ausência neste livro de um capítulo sobre cyberpunk, de agora em diante, para muitos de nós, a expressão literária suprema, se não do pós-modernismo, então do próprio capitalismo tardio” (JAMESON,p.414). gostaria de dizer que trabalhos vêm sendo feitos no sentido de suprir tal falta sentida por Jameson, a exemplo da pesquisa que está sendo desenvolvida por Rodolfo Rorato Londero sobre a ficção cyberpunk brasileira.


3 No texto de Marx, há uma nota que eu a transcrevo:
“Ouro! ouro amarelo, luzidio, precioso!...Eis aqui o suficiente para tornar o preto branco, o feio belo, o injusto justo, o vil nobre, o velho jovem, o covarde valente!... O que é tal coisa, ó deuses imortais? E o que desvia de vossos altares os padres e os acólitos... Esse escravo amarelo constrói e destrói as vossas religiões, obriga a abençoar os malditos, a adorar a lepra branca; coloca os ladrões no banco dos senadores e confere-lhes títulos, homenagens e genuflexões. É ele que faz uma jovem noiva da viúva velha e gasta... Vamos, argila danada, prostituta do gênero humano...” (SHAKESPEARE. Timão de Atenas)

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