Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco (UFMS)
A peça “No gosto doce e amargo das coisas de que somos feitos”, dirigida por Nill Amaral, encena-se no sentido de multiplicar a espectrografia da escritora Clarice Lispector. Somente um diretor com uma sagacidade teatral crítica refinada como Nill poderia captar e levar para o palco um espectro que desse conta de representar para o outro (a platéia) a persona enigmática da escritora Clarice Lispector. E tudo isso acontece sem que aja um encenação direta sobre os textos da escritora. Muito pelo contrário: os fragmentos encenados não fazem outra coisa senão aludir ao universo clariciano, e exatamente aí reside a grandeza da peça. Como se não bastasse, a proposta do diretor é ousada e desafiadora, talvez para fazer jus ao objeto encenado, o que mostra a contemporaneidade da mesma. Enfim, com a referida peça, Nill propõe uma nova forma de se fazer teatro, pelo menos em Campo Grande.
Quanto as atrizes do espetáculo , resta dizer que elas encenam cada uma um espectro completamente deferente um do outro e ao mesmo tempo, cada espectro se complementa, pelo menos em cena. O que por sua vez, dá uma harmonia boa de se ver em palco, já que atesta a competência das mesmas. Na verdade, antes de me deter mais na questão da espectrografia da escritora, devo dizer que a peça gira em torno da vida e da morte, posto que extremamente feminina. Uma persona feminina luta desesperadamente pela vida, mesmo que sua trajetória passe pela morte.Tudo isso, foi captado com beleza e graça pelas atrizes em palco. A platéia sai do espetáculo com um sensação meio inexplicável, ou seja, uma mistura de alegria e constrangimento, já que aprendemos que a vida nos constrangi dela mesma. Nesse sentido, o título da peça já demonstra a situação constrangedora que Clarice propõe desvelar para o humano, sem dar para este o direito da escolha. Viver é um constrangimento humano, dize-nos Clarice Lispector. A peça, por sua vez, reitera tal afirmação.
Mil e uma Clarices se insinuam nas frestas da vida e da ficção. Simplificando todas suas personae, diríamos que não se pode negar que a Clarice mãe, mulher e intelectual ajuda-nos a compreender o retrato esgarçado, heterogêneo e multíplice que a ficção encena a cada novo papel-texto, e vice-versa.
Talvez seja por conta desse modo, desse jeito espectral, ou melhor, “espiritual” de Clarice se portar para ela mesma, para o outro, logo para a sociedade inteira (sua obra tornada pública reforça e endossa tal gesto), que se pode dizer hoje, sem grandes exageros, que um espectro ronda a literatura brasileira - o espectro de Clarice Lispector.
Nem é preciso ser clariciano, basta gostar da literatura brasileira, ou simplesmente de literatura, para entender que a intelectual Clarice Lispector escavou um lugar abissal na tradição literária brasileira, relegando aos pósteros uma herança inegável. Se espectro não for assexuado, diríamos que o fato de Clarice ser mulher contribuiu para que a marca de tal herança se inscrevesse na história de nossa cultura intelectual, posto que na outra ponta tínhamos ninguém menos que um Machado de Assis. Espectralmente feminina, Clarice nos fez ver que alguma coisa estava fora dos eixos na tradição literária brasileira, ou seja, até então o falocentrismo desta. Salvo raríssimas exceções, ela enquanto escritora foi a mais contundente, mesmo que ainda travestida de uma timidez feminina; o que pouco importou, porque seu arrojo intelectual era ousado. Reconheço criticamente que Clarice Lispector não ocupa necessariamente esse lugar no qual estou querendo pô-la, nem muito menos seus espectros, que são muitos. Mas ao mesmo tempo inscreve-se aí a possibilidade de se pensar em o meu espectro dela e, por extensão, o da própria crítica. Sem esquecer que tal espectro está atravessado pela presença de um outro, o de Derrida, entre outros.
Quer seja na filosofia, quer seja na ficção, quer seja pelo pensamento filosófico ou literário, quer seja em Derrida ou em Clarice, quer seja Derrida ou Clarice, o processo de (des)aprendizagem pela sobrevivência (sobrevida) parece ser o mesmo. No final da vida, Derrida diz que apesar de acreditar na verdade platônica de que filosofar é aprender a morrer, a ela se entrega “cada vez menos”, conforme vimos antes. Ou seja, entendemos que, mesmo que Derrida tenha filosofado até o fim da vida, ele permaneceu “ineducável quanto à sabedoria do saber-morrer”, assim como nunca aprendeu-a-viver, como já dissemos. A réplica para Clarice não seria menos verdadeira: escrever é aprender a morrer. Mas, não no sentido de salvação, posto que a escrita não salva o sujeito que a pratica. Sim no sentido de que se escreve apesar da vida e apesar da morte: a escrita, em Clarice, é sobrevida. “Escrever é um dos modos de fracassar”, vaticinou certa vez a escritora. Talvez seja por ter tal consciência que ela tenha feito de sua busca pela linguagem sua travessia única, realizando-se, assim, exatamente ali onde ela enquanto escritora mais fracassaria. Não saber-viver fez com que Clarice contornasse a falta, a culpa, o luto na escrita, e tudo sem nenhuma esperança de salvação. A ficção não compensa a vida, mas às vezes ocupa o seu lugar para que um espectro nela retorne. Se não em vida, depois da morte do sujeito o espectro escava para si (e para seu outro) um lugar de honra na cultura do presente.
Enfim, a peça “No gosto doce e amargo das coisas de que somos feitos” descentraliza e multiplica toda a espectrografia reiterada acima, com o objetivo certeiro de fazer retornar uma Clarice que nunca foi nesses últimos trinta anos de morte da escritora.A peça de Nill Amaral deixa-nos aquele gosto, aquela sensação de que as coisas boas não deveriam acabar nunca. Mas exatamente daí vem Clarice, com sua literatura doce e amarga para nos lembrar, sem dó nem piedade, que as coisas boas são sempre vésperas. Que a peça de Nill não passe incólume pela sociedade que tem insistido numa cegueira ignorante quando se trata de arte de bom gosto.
Quanto as atrizes do espetáculo , resta dizer que elas encenam cada uma um espectro completamente deferente um do outro e ao mesmo tempo, cada espectro se complementa, pelo menos em cena. O que por sua vez, dá uma harmonia boa de se ver em palco, já que atesta a competência das mesmas. Na verdade, antes de me deter mais na questão da espectrografia da escritora, devo dizer que a peça gira em torno da vida e da morte, posto que extremamente feminina. Uma persona feminina luta desesperadamente pela vida, mesmo que sua trajetória passe pela morte.Tudo isso, foi captado com beleza e graça pelas atrizes em palco. A platéia sai do espetáculo com um sensação meio inexplicável, ou seja, uma mistura de alegria e constrangimento, já que aprendemos que a vida nos constrangi dela mesma. Nesse sentido, o título da peça já demonstra a situação constrangedora que Clarice propõe desvelar para o humano, sem dar para este o direito da escolha. Viver é um constrangimento humano, dize-nos Clarice Lispector. A peça, por sua vez, reitera tal afirmação.
Mil e uma Clarices se insinuam nas frestas da vida e da ficção. Simplificando todas suas personae, diríamos que não se pode negar que a Clarice mãe, mulher e intelectual ajuda-nos a compreender o retrato esgarçado, heterogêneo e multíplice que a ficção encena a cada novo papel-texto, e vice-versa.
Talvez seja por conta desse modo, desse jeito espectral, ou melhor, “espiritual” de Clarice se portar para ela mesma, para o outro, logo para a sociedade inteira (sua obra tornada pública reforça e endossa tal gesto), que se pode dizer hoje, sem grandes exageros, que um espectro ronda a literatura brasileira - o espectro de Clarice Lispector.
Nem é preciso ser clariciano, basta gostar da literatura brasileira, ou simplesmente de literatura, para entender que a intelectual Clarice Lispector escavou um lugar abissal na tradição literária brasileira, relegando aos pósteros uma herança inegável. Se espectro não for assexuado, diríamos que o fato de Clarice ser mulher contribuiu para que a marca de tal herança se inscrevesse na história de nossa cultura intelectual, posto que na outra ponta tínhamos ninguém menos que um Machado de Assis. Espectralmente feminina, Clarice nos fez ver que alguma coisa estava fora dos eixos na tradição literária brasileira, ou seja, até então o falocentrismo desta. Salvo raríssimas exceções, ela enquanto escritora foi a mais contundente, mesmo que ainda travestida de uma timidez feminina; o que pouco importou, porque seu arrojo intelectual era ousado. Reconheço criticamente que Clarice Lispector não ocupa necessariamente esse lugar no qual estou querendo pô-la, nem muito menos seus espectros, que são muitos. Mas ao mesmo tempo inscreve-se aí a possibilidade de se pensar em o meu espectro dela e, por extensão, o da própria crítica. Sem esquecer que tal espectro está atravessado pela presença de um outro, o de Derrida, entre outros.
Quer seja na filosofia, quer seja na ficção, quer seja pelo pensamento filosófico ou literário, quer seja em Derrida ou em Clarice, quer seja Derrida ou Clarice, o processo de (des)aprendizagem pela sobrevivência (sobrevida) parece ser o mesmo. No final da vida, Derrida diz que apesar de acreditar na verdade platônica de que filosofar é aprender a morrer, a ela se entrega “cada vez menos”, conforme vimos antes. Ou seja, entendemos que, mesmo que Derrida tenha filosofado até o fim da vida, ele permaneceu “ineducável quanto à sabedoria do saber-morrer”, assim como nunca aprendeu-a-viver, como já dissemos. A réplica para Clarice não seria menos verdadeira: escrever é aprender a morrer. Mas, não no sentido de salvação, posto que a escrita não salva o sujeito que a pratica. Sim no sentido de que se escreve apesar da vida e apesar da morte: a escrita, em Clarice, é sobrevida. “Escrever é um dos modos de fracassar”, vaticinou certa vez a escritora. Talvez seja por ter tal consciência que ela tenha feito de sua busca pela linguagem sua travessia única, realizando-se, assim, exatamente ali onde ela enquanto escritora mais fracassaria. Não saber-viver fez com que Clarice contornasse a falta, a culpa, o luto na escrita, e tudo sem nenhuma esperança de salvação. A ficção não compensa a vida, mas às vezes ocupa o seu lugar para que um espectro nela retorne. Se não em vida, depois da morte do sujeito o espectro escava para si (e para seu outro) um lugar de honra na cultura do presente.
Enfim, a peça “No gosto doce e amargo das coisas de que somos feitos” descentraliza e multiplica toda a espectrografia reiterada acima, com o objetivo certeiro de fazer retornar uma Clarice que nunca foi nesses últimos trinta anos de morte da escritora.A peça de Nill Amaral deixa-nos aquele gosto, aquela sensação de que as coisas boas não deveriam acabar nunca. Mas exatamente daí vem Clarice, com sua literatura doce e amarga para nos lembrar, sem dó nem piedade, que as coisas boas são sempre vésperas. Que a peça de Nill não passe incólume pela sociedade que tem insistido numa cegueira ignorante quando se trata de arte de bom gosto.
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1 Texto publicado no Jornal Correio do Estado CORREIO DO ESTADO - Caderno de Variedades, Campo Grande - MS, p. 7b - 7b, 06 dez. 2007.
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